Acabei há pouco mais de uma hora de voltar a ver os Mão Morta em concerto, desta vez no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Como pretexto traziam o lançamento do novo disco, “Pesadelo em Peluche”, e a comemoração de vinte e cinco anos de carreira, celebrados com a nova digressão que aqui se inicia.
Não fixei o alinhamento do espectáculo, embora tenha visto à saída a set-list a ser autografada pelos membros da banda e um espectador a levá-la consigo. Lembro-me, no entanto, que abriram com “Oub’lá” e seguiram-se-lhe com “Até Cair”, e não voltariam a tocar nessa fase da carreira senão com “1.º de Novembro”, já no primeiro encore.
Ao ouvir “Oub’lá”, embalado pela música e pela presença da banda no palco, que não via desde 2004 na Aula Magna, quando lançaram “Nús”, fui levado a olhar em volta, como já tinha feito à chegada, enquanto me aproximava da zona mais próxima do palco, e tirar um retrato mental da assistência e procurar caras conhecidas de muitos outros concertos ao longo dos anos. Costumo dizer muita vez, nas inúmeras conversas sobre música e concertos, encantado pelo lado positivo do avançar da idade, que me faz trazer na bagagem as oportunidades de ter estado presente em acontecimentos que os anos acumulados em camadas tornaram míticos. Neste caso é o facto de, nas minhas duas primeiras vezes, ter visto os Mão Morta no Rock Rendez-Vous, no final de 1989 e início de 1990. Se entre as pessoas mais novas isso é caso único, quantas das pessoas que estavam ali comigo no Coliseu não teriam também estado presentes nos mesmos concertos a que assisti, ou até outros ainda há mais tempo do que eu? O recuar para essa memória, fez-me pela primeira vez contar quase vinte e um anos completos desde esse Outono de 89. 21 anos. E quão diferente era a assistência de um concerto dos Mão Morta. Quão diferentes eram, de entre todas aquelas pessoas para quem eu voltei o meu olhar, os que lá estiveram com 21 anos a menos nas suas vidas. Ao som de “Oub’lá” e “E se depois” costumava levantar-se um “Pogo” infernal, uma máquina centrifugadora de pernas e braços em movimentos, encontrões, pontapés, pisadas e cotoveladas, e moche como culminar de todo aquele frenesim orgiástico, que emulava colectivamente os estertores que, em palco, possuíam Adolfo Luxúria Canibal dos pés à cabeça. Ao imaginar a gente que esteve ali comigo há duas horas atrás, numa cena como a que vi na minha memória e observá-los nos seus movimentos ondulantes de tronco e cintura a acompanhar o soft head-banging que as músicas lhes provocavam, ocorreu-me o quão diferente está a audiência dos Mão Morta, o que me ocorrer o quão diferentes estão os próprios.
Os Mão Morta, de banda com estatuto alternativo que não perderam, tornaram-se, pela força dos anos, uma instituição, se não aceite publicamente, pelo menos na consciência de quantos os continuam a acompanhar. E a sua história enquanto grupo reflecte isso. Ao observar as pessoas que ali estavam à minha volta na plateia, pensei nas histórias que ali estariam, em cada uma das histórias pessoais que estava ali a abanar-se ou a saltar sobre os calcanhares ao som da música, e em que episódios dessa história estavam presentes aquela banda, o que ela significaria, que pedaços da banda seriam especiais, os especiais. Entre uma música e outra, os gritos com nomes de músicas davam uma pequena ideia de quais seriam especiais, “Facas em Sangue”, “Barcelona”, “Lisboa”, “Quero Morder-te as Mãos”, “Bófia”… A história da banda já não é apenas a história da banda, dos membros que entraram e saíram, dos discos e percursos e digressões e espectáculos e aventuras; tem também no seu tecido as camadas dos fãs e dos seus momentos pessoais que assim passaram a ser parte indivisível de uma história comum. Quais serão os momentos especiais da banda? Serão sempre os mesmos, tal como os dos fãs podem ter mudado? Há dez anos atrás, no Lux, quando comemoravam os seus quinze anos de existência, tocaram “Oub’lá”, que o Adolfo, vestido de fato claro, muito longe da sua imagem icónica, disse “Esta foi para vocês; esta agora é para nós”, e atacaram o “Anarquista Duval” com tais ganas difíceis de igualar, após o que se atirou de mergulho de pés para a frente para o meio do público. Hoje quais serão?
Tão diferentes estão eles, mas tão coerentes na sua evolução. Da tepidez dos lençóis e do amor que assanhava os gatos em noites de luar a reluzir nas facas ensanguentadas dos adolescentes, para o posto de observação da alienação crescente das pessoas face à anestesia do espectáculo da sociedade do consumo de massas, das buscas pseudo-místicas e dos fenómenos urbanos de que todos somos reféns, os Mão Morta evoluíram de uma abordagem de quem sente as vísceras à flora da pele típica de quem chega à idade adulta e tem ganas de levar a vida em frente ao pontapé e à biqueirada, para um posicionamento de quem se distancia gradualmente para observar o panorama alargado da realidade, isolando-lhe os fenómenos que se interligam entre si no mosaico de que é feita.
Este acalmar das emoções que a audição da música dos Mão Morta, este aprofundar, este toque interior, faz com que o fiel da sua balança pese mais para o lado reflexivo e literário, embora ainda oscile com alguma frequência para a espuma de violência sónica que emerge do âmago da banda. Ao vê-los, ocorreu-me uma comparação do recém-quinquagenário Adolfo Luxúria Canibal com Nick Cave, nos que diz respeito aos seus percursos artísticos: uma violenta visceralidade que borbulhava dos Birthday Party, já tocados interiormente pela pena literária, para depois darem lugar aos Bad Seeds que têm vindo ao longo dos anos a exorcizar a semente de maldade que os corrói. Nick Cave e os Birthday Party, um dois em um de grande influência na semente de onde germinariam os Mão Morta…
Os discos dos Mão Morta, hoje já não são os instrumentos de pura rebelião sónica experimental a envolver os ácidos interiores que Adolfo Luxúria Canibal vertia nas letras; ao 4.º disco passaram para um registo de estórias como contos musicados, episódios que, desenvolvidos literariamente dariam para um livro, como aconteceu com a edição especial em vinil, que trazia consigo um álbum de banda desenhada. Depois disso, eles forma visitar Heiner Müller e dedicaram-se ao ensaio sobre Guy Debord e a Sociedade do Espectáculo. Foram até à Beat Generation por via do Howl for Carl Solomon, de Allen Ginsberg, que por via do seu julgamento em tribunal por obscenidade trouxe à ribalta toda uma geração de marginais de caneta afiada e pouco dados a convencionalismos estéticos e literários e que abalaram de vez as fundações da conservadora sociedade americana e, em consequência, todo o mundo ocidental. O Mal de Isidore Ducasse veio ao de cima na fermentação lenta dos Cantos de Maldoror como livro de cabeceira da banda. E chegaram até J. G. Ballard, supostamente, por via de Atrocity Exhibition, a que Ian Curtis já tinha dedicado a letra dos derradeiro trabalho dos Joy Division, Closer.
Este percurso tornou os Mão Morta numa banda que já não dá vontade de saltar com eles, mas sim de ouvi-los. Já há muito que deixou de ser, ou talvez nunca tenha sido, uma banda cujos discos podem ser ouvidos enquanto se faz outra coisa. Ou se tornam demasiado incómodos ou demasiado absorventes na atenção que requerem.
Ainda assim, há um pouco de desilusão pessoal que atravessa estas linhas, não por responsabilidade dos Mão Morta, mas mais como emergência dos processos de evolução a que o decorrer da vida nos sujeita a todos enquanto seres humanos. Uma frase feita diz que nunca se deve voltar a onde já se foi feliz. Isto pode ser entendido que nada se repete e que ir à procura de uma sensação que já teve antes é uma avenida aberta a alta velocidade para a frustração de um desejo ou sonho. Estar à procura do Pogo ou envolvimento de um concerto como se ainda tivesse dezassete anos é estar à procura de um mito que só um adolescente consegue ver. Com o passar do tempo, o avançar dos anos e da experiência, vai-se olhando para o artista como homem com as mesmas características humanas que nós, qualidades e defeitos a mais ou a menos… A realidade emerge sempre como a espuma de um ribeiro inquinado… Não que a realidade seja má, antes pelo contrário, a realidade trás consigo um estímulo intelectual da reflexão e da discussão num fluxo que só a arte consegue superar. Mas tomar-nos os sentidos de assalto e envolvê-los e fazê-los sair do chão, só o mito que neste caso se viu aos dezassete anos…
À saída do concerto, comprei o DVD “Maldoror” na banca que estava montada ao cimo das escadas e passado um pouco apareceram os membros da banda para os autógrafos e falarem com amigos e público. A realidade já tinha voltado ao seu lugar, e os Mão Morta já se desdobravam em tantos ramos quantos os seus membros. O último a aparecer foi o Adolfo, que vinha acompanhado do seu filho adolescente, numa faceta de pai que não é certamente a primeira que se imagina de alguém que juntou Luxúria e Canibal ao seu nome…
Uma noite memorável, pelo concerto e por tudo, além e aquém espectáculo…