Escreve-se. I

9 05 2010

Estupidez, por José Manuel dos Santos, in Impressão Digital, Actual, Expresso, 8 de Maio de 2010

Os deuses, cruéis quando não são ausentes, nisto foram bondosos para os homens. Deram aos que têm génio o conhecimento de o terem, mas privaram os medíocres da consciência da sua mediocridade. Por isso os ouvimos dizer tudo o que os mostra nulos e vazios, como se estivessem a dar a solução para o problema e o remédio para o mal. Afinal, no ser isto assim, talvez esteja a prova mais cruel da crueldade dos deuses: recusam a estes cegos a escuridão que lhes revelaria a cegueira, trocando-a por uma luz falsa que lhes falseia os próprios olhos.

Penso nisto muitas vezes. Penso nisto, agora, quando olho o desconcerto do mundo e o concerto que lhe querem dar os que o desconcertaram. Aquilo que mais assusta nestes dias em que tudo corre mal, ameaçando ainda correr pior nos próximos, é o rio de lugares-comuns e frases feitas que, a toda a hora, desagua sobre nós. Passámos ao regime de verdade fundado na “tautologia ontológica”, aquele que garante a glória de quem diz, com voz profunda: “O mundo é o mundo”, “Uma crise é uma crise”, “A economia é a economia”; “A Europa é a Europa”, “Portugal é Portugal”. Ou que louva a imaginação e a originalidade dos que afirmam: “Se não fizermos o nosso trabalho, ninguém o fará por nós”, “Não é possível continuarmos a viver acima dos nosso recursos”, “O Estado não pode consumir a riqueza criada pela sociedade”, “Não devemos gastar hoje o que as gerações futuras vão ter que pagar”, “Temos que crescer mais”.

O mais perturbador nesta crise feita de muitas crises é a estupidez do discurso sobre ela. Essa estupidez que fala e a estupidez que faz; a estupidez doutoral e a estupidez analfabeta. Há a estupidez imoral e a estupidez moralista; a estupidez irresponsável e a estupidez grave. Há a estupidez culpada e a estupidez inocente; a estupidez delirante e a estupidez sensata. Há a estupidez enciclopédica e a estupidez especializada; a estupidez juvenil e a estupidez senil. Há a estupidez individual e a estupidez colectiva; a estupidez tola e a estupidez espertalhona. Todos estes tipos de estupidez têm em comum cinco princípios. Primeiro: o que eu digo não importa, o que importa é ser eu a dizê-lo. Segundo: o que eu digo é um íman que repele qualquer partícula de pensamento. Terceiro: o que eu digo é tão estúpido que torna inverosímil que o seja tanto. Quarto: o que eu digo é tão banal que toda a gente pode estar de acordo. Quinto: o que eu digo salva.

Esta estupidez heteronímica não compreende que a doença não se cura com aquilo que a causou. E o que a causou foi a mistura de estupidez, contrafacção, marketing, competição, tecnologia, corrupção, lucro, violência e narcisismo, que grita:”Tens de ganhar, tens de destruir o outro, tens de ser o primeiro em tudo. Dinheiro é poder e poder é futuro. Se não tiveres muito dinheiro e muito sucesso, és um falhado.”





tempo

8 05 2010

Ao fim de algum tempo a sensação de aventura e descoberta começa a atenuar-se e o arrepio pela espinha acima transforma-se numa tepidez confortável que leva à procura da acomodação. Será essa acomodação uma coisa má? Não sei. Mas acho, sim, que lançar fundações para algo que pode durar mais do que o próprio arrepio, que pode estender-se para lá do momento e viver por toda uma vida, pode ser mais do que uma aventura, uma saga, com momentos vívidos, episódios aborrecidos, histórias, umas fugazes, outras que nos levam de capítulo em capítulo, com paragens ou com avidez de ler rapidamente para ver o que o próximo tem para contar, tanta coisa.

No final, é para quem nos acompanhou nas aventuras que olhamos e repetimos as histórias, contamo-las já sem palavras, basta um olhar para saber o que vai pelo pensamento, o que esperámos delas, o que aconteceu realmente e o que recordamos.

Nunca saí à aventura, numa vivi uma saga, mas tenho a mochila pronta atrás da porta à espera da hora da partida.





Etimologia 8

5 05 2010

Misantropo, aquele que odeia a humanidade, vive isolado, afastado do seu semelhante.

Do grego misein, odiar + anthropos, homem.

De acordo com Online Etymology Dictionary, existe uma atestação da forma misanthropist nos anos 50 do século XVII.





Mão Morta no Coliseu dos Recreios

30 04 2010

Acabei há pouco mais de uma hora de voltar a ver os Mão Morta em concerto, desta vez no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Como pretexto traziam o lançamento do novo disco, “Pesadelo em Peluche”, e a comemoração de vinte e cinco anos de carreira, celebrados com a nova digressão que aqui se inicia.

Não fixei o alinhamento do espectáculo, embora tenha visto à saída a set-list a ser autografada pelos membros da banda e um espectador a levá-la consigo. Lembro-me, no entanto, que abriram com “Oub’lá” e seguiram-se-lhe com “Até Cair”, e não voltariam a tocar nessa fase da carreira senão com “1.º de Novembro”, já no primeiro encore.

Ao ouvir “Oub’lá”, embalado pela música e pela presença da banda no palco, que não via desde 2004 na Aula Magna, quando lançaram “Nús”, fui levado a olhar em volta,  como já tinha feito à chegada, enquanto me aproximava da zona mais próxima do palco, e tirar um retrato mental da assistência e procurar caras conhecidas de muitos outros concertos ao longo dos anos. Costumo dizer muita vez, nas inúmeras conversas sobre música e concertos, encantado pelo lado positivo do avançar da idade, que me faz trazer na bagagem as oportunidades de ter estado presente em acontecimentos que os anos acumulados em camadas tornaram míticos. Neste caso é o facto de, nas minhas duas primeiras vezes, ter visto os Mão Morta no Rock Rendez-Vous, no final de 1989 e início de 1990. Se entre as pessoas mais novas isso é caso único, quantas das pessoas que estavam ali comigo no Coliseu não teriam também estado presentes nos mesmos concertos a que assisti, ou até outros ainda há mais tempo do que eu? O recuar para essa memória, fez-me pela primeira vez contar quase vinte e um anos completos desde esse Outono de 89. 21 anos. E quão diferente era a assistência de um concerto dos Mão Morta. Quão diferentes eram, de entre todas aquelas pessoas para quem eu voltei o meu olhar, os que lá estiveram com 21 anos a menos nas suas vidas. Ao som de “Oub’lá” e “E se depois” costumava levantar-se um “Pogo” infernal, uma máquina centrifugadora de pernas e braços em movimentos, encontrões, pontapés, pisadas e cotoveladas, e moche como culminar de todo aquele frenesim orgiástico, que emulava colectivamente os estertores que, em palco, possuíam Adolfo Luxúria Canibal dos pés à cabeça. Ao imaginar a gente que esteve ali comigo há duas horas atrás, numa cena como a que vi na minha memória e observá-los nos seus movimentos ondulantes de tronco e cintura a acompanhar o soft head-banging que as músicas lhes provocavam, ocorreu-me o quão diferente está a audiência dos Mão Morta, o que me ocorrer o quão diferentes estão os próprios.

Os Mão Morta, de banda com estatuto alternativo que não perderam, tornaram-se, pela força dos anos, uma instituição, se não aceite publicamente, pelo menos na consciência de quantos os continuam a acompanhar. E a sua história enquanto grupo reflecte isso. Ao observar as pessoas que ali estavam à minha volta na plateia, pensei nas histórias que ali estariam, em cada uma das histórias pessoais que estava ali a abanar-se ou a saltar sobre os calcanhares ao som da música, e em que episódios dessa história estavam presentes aquela banda, o que ela significaria, que pedaços da banda seriam especiais, os especiais. Entre uma música e outra, os gritos com nomes de músicas davam uma pequena ideia de quais seriam especiais, “Facas em Sangue”, “Barcelona”, “Lisboa”, “Quero Morder-te as Mãos”, “Bófia”… A história da banda já não é apenas a história da banda, dos membros que entraram e saíram, dos discos e percursos e digressões e espectáculos e aventuras; tem também no seu tecido as camadas dos fãs e dos seus momentos pessoais que assim passaram a ser parte indivisível de uma história comum. Quais serão os momentos especiais da banda? Serão sempre os mesmos, tal como os dos fãs podem ter mudado? Há dez anos atrás, no Lux, quando comemoravam os seus quinze anos de existência, tocaram “Oub’lá”, que o Adolfo, vestido de fato claro, muito longe da sua imagem icónica, disse “Esta foi para vocês; esta agora é para nós”, e atacaram o “Anarquista Duval” com tais ganas difíceis de igualar, após o que se atirou de mergulho de pés para a frente para o meio do público. Hoje quais serão?

Tão diferentes estão eles, mas tão coerentes na sua evolução. Da tepidez dos lençóis e do amor que assanhava os gatos em noites de luar a reluzir nas facas ensanguentadas dos adolescentes, para o posto de observação da alienação crescente das pessoas face à anestesia do espectáculo da sociedade do consumo de massas, das buscas pseudo-místicas e dos fenómenos urbanos de que todos somos reféns, os Mão Morta evoluíram de uma abordagem de quem sente as vísceras à flora da pele típica de quem chega à idade adulta e tem ganas de levar a vida em frente ao pontapé e à biqueirada, para um posicionamento de quem se distancia gradualmente para observar o panorama alargado da realidade, isolando-lhe os fenómenos que se interligam entre si no mosaico de que é feita.

Este acalmar das emoções que a audição da música dos Mão Morta, este aprofundar, este toque interior, faz com que o fiel da sua balança pese mais para o lado reflexivo e literário, embora ainda oscile com alguma frequência para a espuma de violência sónica que emerge do âmago da banda. Ao vê-los, ocorreu-me uma comparação do recém-quinquagenário Adolfo Luxúria Canibal com Nick Cave, nos que diz respeito aos seus percursos artísticos: uma violenta visceralidade que borbulhava dos Birthday Party, já tocados interiormente pela pena literária, para depois darem lugar aos Bad Seeds que têm vindo ao longo dos anos a exorcizar a semente de maldade que os corrói. Nick Cave e os Birthday Party, um dois em um de grande influência na semente de onde germinariam os Mão Morta…

Os discos dos Mão Morta, hoje já não são os instrumentos de pura rebelião sónica experimental a envolver os ácidos interiores que Adolfo Luxúria Canibal vertia nas letras; ao 4.º disco passaram para um registo de estórias como contos musicados, episódios que, desenvolvidos literariamente dariam para um livro, como aconteceu com a edição especial em vinil, que trazia consigo um álbum de banda desenhada. Depois disso, eles forma visitar Heiner Müller e dedicaram-se ao ensaio sobre Guy Debord e a Sociedade do Espectáculo. Foram até à Beat Generation por via do Howl for Carl Solomon, de Allen Ginsberg, que por via do seu julgamento em tribunal por obscenidade trouxe à ribalta toda uma geração de marginais de caneta afiada e pouco dados a convencionalismos estéticos e literários e que abalaram de vez as fundações da conservadora sociedade americana e, em consequência, todo o mundo ocidental. O Mal de Isidore Ducasse veio ao de cima na fermentação lenta dos Cantos de Maldoror como livro de cabeceira da banda. E chegaram até J. G. Ballard, supostamente, por via de Atrocity Exhibition, a que Ian Curtis já tinha dedicado a letra dos derradeiro trabalho dos Joy Division, Closer.

Este percurso tornou os Mão Morta numa banda que já não dá vontade de saltar com eles, mas sim de ouvi-los. Já há muito que deixou de ser, ou talvez nunca tenha sido, uma banda cujos discos podem ser ouvidos enquanto se faz outra coisa. Ou se tornam demasiado incómodos ou demasiado absorventes na atenção que requerem.

Ainda assim, há um pouco de desilusão pessoal que atravessa estas linhas, não por responsabilidade dos Mão Morta, mas mais como emergência dos processos de evolução a que o decorrer da vida nos sujeita a todos enquanto seres humanos. Uma frase feita diz que nunca se deve voltar a onde já se foi feliz. Isto pode ser entendido que nada se repete e que ir à procura de uma sensação que já teve antes é uma avenida aberta a alta velocidade para a frustração de um desejo ou sonho. Estar à procura do Pogo ou envolvimento de um concerto como se ainda tivesse dezassete anos é estar à procura de um mito que só um adolescente consegue ver. Com o passar do tempo, o avançar dos anos e da experiência, vai-se olhando para o artista como homem com as mesmas características humanas que nós, qualidades e defeitos a mais ou a menos… A realidade emerge sempre como a espuma de um ribeiro inquinado… Não que a realidade seja má, antes pelo contrário, a realidade trás consigo um estímulo intelectual da reflexão e da discussão num fluxo que só a arte consegue superar. Mas tomar-nos os sentidos de assalto e envolvê-los e fazê-los sair do chão, só o mito que neste caso se viu aos dezassete anos…

À saída do concerto, comprei o DVD “Maldoror” na banca que estava montada ao cimo das escadas e passado um pouco apareceram os membros da banda para os autógrafos e falarem com amigos e público. A realidade já tinha voltado ao seu lugar, e os Mão Morta já se desdobravam em tantos ramos quantos os seus membros. O último a aparecer foi o Adolfo, que vinha acompanhado do seu filho adolescente, numa faceta de pai que não é certamente a primeira que se imagina de alguém que juntou Luxúria e Canibal ao seu nome…

Uma noite memorável, pelo concerto e por tudo, além e aquém espectáculo…





Adolfo Luxúria Canibal

28 04 2010

Entrevista com José Fialho Gouveia, Bairro Alto, RTP 2, 27 de Abril, 2010

A comemorar 25 anos de carreira, é difícil que alguém que goste de música e lhe dedique alguma atenção nunca tenha ouvido falar dos Mão Morta. Usando este aniversário como pretexto, Adolfo Morais de Macedo, que assume o estatuto público e carisma do seu alter-ego, Adolfo Luxúria Canibal, foi convidado a falar sobre a sua vida e carreira.

Pelo seu tempo de vida, os Mão Morta, tornaram-se inevitavelmente uma banda que encontrou o seu lugar junto do público, mesmo aquele que não gosta, por via da sua permanência, da sua sobrevivência, e talvez seja daqueles casos em que é mais mitificada do que realmente conhecida. Poucos terão sido testemunhas, mas dificilmente alguém não terá já ouvido na noite em Adolfo se esfaqueou a si próprio em palco, no desaparecido Rock Rendez-Vous, continuando a actuação até cair.

Os Mão Morta, e Adolfo Luxúria Canibal, são um fenómeno musical e, num espectro mais abrangente, representativos de uma realidade que, enquanto se situa nas margens pode ser evitada mas que, pela sua presença continuada, consolidam a sua posição e estatuto ao longo do tempo, fazendo com que quem não lhe dê sinal de reconhecimento passe por cego, ignorante ou tenha má vontade. O reconhecimento nunca foi, no entanto, o objectivo que norteou a sua existência, e se ele chegou ao longo deste tempo, deveu-se à coincidência entre os seus interesses e prazeres musical e intelectual e o ouvido do público.

A evolução da sua carreira não foi diferente da de algumas outras bandas com que partilham opções estéticas e audiências. Por exemplo, os Einstürzende Neubauten, berlinenses, iniciados no finais da década de 70 no underground do rock industrial, tornaram-se na viragem do século uma banda frequentadora dos grandes centros culturais pelo mundo fora. No caso das suas passagens por Portugal, deram um primeiro concerto numa Voz do Operário em estado decadente no início dos anos 90, regressando em 2005 ao Grande Auditório do CCB, e a definição da sua música pode passar pela evolução de um terrorismo industrial para um laboratório de experimentação sónica.

A carreira dos Mão Morta pode também ser definida segundo termos semelhantes, com um início em que as suas influências mais primárias, as musicais, foram destiladas por meio de um domínio incipiente dos instrumentos, até ao ponto em que cada trabalho passou a ser orientado segundo um tema centrar, estórias em cidades ou Heiner Müller, os Situacionistas, a Beat Generation, Isidore Ducasse ou J. G. Ballard.

Mas em qualquer abordagem que se faça a uma banda ou ao seu trabalho, assim como a qualquer artista, independentemente do seu meio de expressão, e à sua obra, centrado sobre a análise da sua obra, existe sempre a hipótese ou inevitabilidade de se perder a dimensão mais profunda do impulso criador, ou por outro lado, da fruição.

Na entrevista, tornou-se perceptível que a música de José Fialho Gouveia não é a dos Mão Morta, ou sequer é conhecedor da sua obra. Não digo no entanto que ele seja um mau entrevistador e, sendo espectador mais ou menos regular do seu programa, digo antes o contrário, até pela empatia que consegue estabelecer com os seus entrevistados. Apenas me pareceu evidente o seu distanciamento em relação ao universo estético, intelectual e cultural dos Mão Morta e de Adolfo Luxúria Canibal.

Este distanciamento desperta-me no sentido das dúvidas e questões sobre a actividade do entrevistador ou de alguém que se coloca na posição de alguém que tenta servir de meio de transmissão de uma história.

A empatia significa o estabelecimento de uma relação entre duas pessoas em que uma tem a capacidade de se colocar na posição de outra, de compreender as suas motivações, posições e anseios. No entanto, excluindo casos de esquizofrenia, o ser humano não tem a capacidade de se colocar fora de si e assumir a posição de outro. Até mesmo no caso dos actores, ao vestirem a pele do personagem que representam, recorrem a referências do seu universo íntimo para compreenderem e interiorizarem as particularidades do outro. Assim, tal como Adolfo Morais de Macedo e Adolfo Luxúria Canibal são faces do mesmo homem, e não duas existências distintas, também o entrevistador não consegue distanciar-se mais do que de uma faceta para outra da sua própria pessoa no exercício do seu  trabalho. Foi assim que se tornou evidente a não existência de qualquer plano comum entre o entrevistador José Fialho Gouveia e Adolfo Luxúria Canibal.

Comparando com uma entrevista dada há alguns anos a Ana Sousa Dias, a de hoje pareceu frouxa. O aperto de mão no final, podendo ser entendido como um sinal de reconhecimento transmitido do entrevistador ao entrevistado, pareceu-me mais uma formalidade de quem está agradecido por ter conseguido chegar ao final e pode respirar de alívio, até porque foi a primeira vez que me lembro de o ter visto nos vários programas a que tive oportunidade de assistir.

Por outro lado, a postura desprendida de Adolfo Luxúria Canibal face à música para lá do gozo de quem vai com os amigos brincar para o quarto dos brinquedos (expressão usada habitualmente pelo próprio para definir a sua ligação com a carreira musical), faz com que a sua posição na cadeira de entrevistado seja duvidosa no sentido de não se saber se se está perante um jurista que escreve e faz música, ou perante um músico e escritor que é jurista para garantir um meio de subsistência.

Referindo-se às bocas que lhe eram dirigidas na adolescência relativas à sua aparência, bocas de “pedreiro à sopeira”, o vocalista definiu uma atitude que lhe é dirigida, a do crítico em relação ao artista que tenta encaixotar,  e que ele próprio sabe muito bem manipular, como quem se diverte com a falta de pontaria do atirador.

Ou seja, ocorre-me que os Mão Morta, nas carreiras profissionais de cada um dos seus membros, são uma espécie de Banqueiro Anarquista, figura que de certeza lhes é cara, mantendo uma vida que lhes permite os meios financeiros suficientes para poderem viver as suas opções artísticas sem quaisquer cedências. E, tal como a ambiguidade seria para o Banqueiro Anarquista a fonte da sua satisfação pessoal e pilar da sua personalidade, também a hesitação e o desconhecimento face à sua pessoa por parte dos entrevistadores que, seguindo o impulso jornalístico de quem tenta arrancar generalidades aos entrevistados que os definam, são motivo de gozo para Adolfo Luxúria Canibal e garantia de manutenção do mito pessoal que nestes 25 anos criou e tem feito pairar sobre Portugal.





Parnassus

9 04 2010

Terry Gilliam excedeu-se. A idade apurou-lhe a qualidade das suas visões e trouxe-lhe a religiosidade à superfície, ainda que esta seja tão grotesca, humorada e causticamente escrita e rodada à sua maneira do que nos habituou. Na eterna luta entre o bem e o mal, o diabo (Mr. Nick) é bem sucedido e está em toda a parte enquanto Deus, personificado no Dr. Parnassus, não passa de um decadente número de feira.

A clássica história da vida eterna que é trocada pela experiência do amor por uma humana é recontada enquanto memória de um pacto com o diabo, com quem Parnassus tem uma relação permanente de aproximações e afastamentos, como duas faces da mesma moeda que é constantemente atirada ao ar num jogo em que ambos podem ser cara ou coroa.

Pelos meios que caracterizam o seu imaginário e ilustrações desde os tempos dos Monty Pythons, Terry Gilliam oferece-nos uma visão de como é possível conquistar a imortalidade e enganar o diabo através amor e dos seus frutos. Talvez este filme seja um olhar retrospectivo do próprio Gilliam para o seu percurso e para o que dele já conquistou ou irá conquistar a permanência na posteridade. Pela religiosidade do seu olhar, não deixa de ser um filme surpreendente e a não perder.

Christopher Plummer e Tom Waits estão magníficos na pele de Parnassus e Mr. Nick. Heath Ledger aparece num das suas últimas representações, partilhando o seu personagem com Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell. Lily Cole é a presença feminina cujo(s) personagem(ns) faz(em) de centro da história.





passagem

4 04 2010

DÚVIDA:

Não sei se nunca a encontrei ou se durante o tempo por onde caminhei até aqui a perdi mas…

DESEJO:

… quero encontrar a minha Ostra!





imprensa ao domingo

29 03 2010

Na modorra de fim do fim-de-semana, domingo ao fim de tarde a tentar enganar o tempo que resta até ao início da rat-race semanal, o olhar, incapaz de se fixar por mais do que dez segundos sobre qualquer que seja o tema ou alvo, passa embaciado pelas revistas dominicais dos jornais diários. Na do Correio da Manhã, em quatro páginas de foto-reportagem, mais precisamente na 42, surge na fotografia 7 a legenda “Leitura, O jornal mais lido em Portugal tem lugar cativo em São Bento”, na pantalha de um dos polémicos computadores de propriedade pública e uso privado dos deputados, em versão PDF. Provavelmente, estas serão das últimas fotografias tiradas aos computadores dos nossos representantes na Assembleia da República, tendo em conta a polémica que se instalou a propósito da devassada privacidade. Polémicas à parte, que não são mais do que pequenas baforadas a juntar à cortina de fumo que separa as manobras e interesses dos representantes das necessidades e anseios dos representados, a fotografia deixou-me com uma ponta de curiosidade e gostaria de ter a possibilidade de a ver satisfeita: Qual será a necessidade de um deputado ter instalado no seu computador o Adobe Acrobat Profissional? Tendo eu um percurso já longo no sector das artes gráficas e da edição, onde este software é amplamente usado, pergunto-me se os senhores deputados serão todos eles editores de documentos em PDF a nível profissional, a ponto de exigir um software cuja licença custa algumas centenas de euros, ou se a fotografia captou por grande coincidência a única máquina que o tem instalado. Não estou a ver os senhores deputados a terem necessidades de edição gráfica aprofundadas, vejo-os quando muito a editarem documentos de processamento de texto, folhas de cálculo, apresentações e, muito provavelmente, nem serão os próprios a fazê-lo. Sabendo da preferência do Governo em manter a ligação com a Microsoft, empresa bastante necessitada do investimento dos milhões com que o Estado português faz questão de apoiar, admiro-me que não haja ninguém que saiba naquela casa que as aplicações do Office conseguem gerar documentos em PDF. E mesmo que não existisse essa possibilidade, softwares livres de criação de documentos no dito formato é coisa que não falta… O nosso Governo é realmente um benfeitor das empresas de software, e aparentemente a Adobe é outras das beneficiadas. Fazendo as contas aos actuais 230 deputados com assento parlamentar e multiplicando esse número pelos € 559,00 (excluindo IVA) que custa a licença na loja online, obtém-se a bela soma de € 128.570,00 para que os digníssimos possam profissionalmente manter-se actualizados com as últimas da imprensa. A não ser que no computador fotografado tenha sido instalado um software não licenciado, mas essa é uma hipótese em que não me atrevo acreditar…

Na mesma revista, umas quantas páginas antes, na 8, uma pequena chamada sobre a depressão que está a afectar a comunidade canina na Grã-Bretanha: “A depressão, uma doença caracterizada por tristeza prolongada, está a afectar os cães, razão pela qual o Reino Unido decidiu disponibilizar a venda de antidepressivos caninos.” Pergunto-me se haverá alguma mensagem subliminar no facto de os editores terem decidido ilustrar o pequeno texto com a fotografia de um cão-de-água português.






uma forma diferente…

22 03 2010

ESPAÇO: Andar inferior do centro comercial no centro da cidade, onde toda a gente gosta de ser vista a ir e ver quem vai ao cinema, salas da Medeia, prestigiante para o blockbusted movie-goer e inóqua para a reputação do cinéfilo, (quantos de entre uns e outros reconhecerão as fotografias de La Dolce Vita que pontuam de grão preto e branco as cores que excitam o consumo de todos os desejos).

CENA: Uma multidão que partilha os 80’s no campo da data de nascimento do BI amontoa-se para o canto do andar inferior, junto à livraria, onde abriu uma loja que vende uma nova forma de comer sushi. Em misturas calculadas, sexo feminino e masculino estudam a melhor forma de encher o maior campo de visão possível ao mesmo tempo que tentam não perder a vez de chegar ao balcão. Nas mesas, instalam-se emissárias que guardam lugares e observam quem passa e calculam quantos olhares lhes são lançados, rindo-se entre si apenas pela luz particular que o sorriso lhes dá naquele momento. Passados vinte minutos, já deixaram o seu lugar vago.

Ao fim de noventa minutos, o local é uma mistura de pessoas que passa com tabuleiros nas mãos à procura de lugar entre as cadeiras fora do sítio e embalagens de cartão usadas, e das primeiras não resta qualquer memória.